A GENIALIDADE DO CONTERRÂNEO PAULO DE BADÉ

Por - em 8 anos atrás 1166

Álisson Pinheiro

O nosso Seridó começou a ser povoado há 300 anos, os pioneiros geraram muito filhos e estes filhos grandes famílias. A população aumentou tão depressa que em poucas décadas formaram-se os primeiros arruados de casas, como foi o caso de Cuité, em 1768.

Entre nós, o avanço educacional não acompanhou o aumento populacional, pois consta que nossos antepassados viveram por várias gerações na mais completa ignorância; as nossas primeiras escolas públicas fossem criadas, somente na segunda metade do século 19. Por isso, não deixa de ser espantoso saber que o chão do nosso Seridó viu nascer um dos grandes intelectuais brasileiros da atualidade, o tradutor  Paulo Bezerra de Azevedo, conhecido pelos lavradenses como “Paulo de Badé”.

A história de vida de Paulo de Badé(vamos chamá-lo assim) parece saída da ficção que ele traduz. Nascido em Pedra Lavrada quando esta ainda pertencia à Picuí, passou toda a infância e adolescência em nossa região, seja garimpando minérios nos “altos” próximos”, ajudando ao pai no ofício de ferreiro ou mesmo dando uma força na construção de barragens em Cubati. Numa época em que eram incipientes os produtos fabricados em massa, seu pai era o melhor ferreiro das redondezas, exímio fazedor de facas, ferramentas agrícolas, panelas, etc.

No ano de 1958, iniciou-se uma grande seca, e talvez esse fenômenos tenha sido decisivo para que ele emigrasse para Atibaia, no estado de São Paulo, seguindo os passos de um irmão que se mudara antes. Esse irmão já era metalúrgico e militante sindical; com tal companhia, não é de estranhar que Paulo tenha se tornado operário e militante do PCB, o antigo partido comunista brasileiro que, naquele tempo, quase que monopolizava a esquerda brasileira. E  logo mergulhou nas lutas sindicais e políticas, participando ativamente da famosa greve geral de 1962 que, além de resultar na criação do décimo terceiro salário, provocou sua prisão, demissão do trabalho e posterior dificuldade para arranjar uma nova colocação no mercado de trabalho.

Seja pelo seu talento ou para compensá-lo das perseguições sofridas, a direção do PCB resolveu enviá-lo à antiga União Soviética para que fizesse um curso de “formação política”. O curso teria uma duração de seis meses, mas ele acabou passando oito anos, já que, junto com o Golpe de 1964, veio o temor de prisão e torturas no retorno ! Ele ficou retido na Rússia sem data para voltar, e começou a se dedicar ao aprendizado da difícil língua russa e seus estudos de tradução que lhe trariam a glória de hoje que, penso eu, será eterna.

Logo que conseguiu ingressar na universidade, arranjou emprego numa rádio dedicada às questões políticas. Além de estudar muito e de aprender os fundamentos da língua russa, viajou pelos do Leste Europeu, estando próximo dos grandes acontecimentos do século XX, como a Primavera de Praga (1968): ele estava visitando a capital tcheca, de onde saiu um dia antes de os tanques soviéticos esmagarem o movimento liberalizante que estava em curso.

E o resultado foi que ele aprendeu o idioma russo tão bem que é capaz de verter textos literários nessa língua dificílima para o português. Contudo, não pensem que qualquer um que aprenda um idioma estrangeiro possa produzir satisfatoriamente textos de alta qualidade para a nossa língua, pois o bilinguismo é uma habilidade bem diferente daquela necessário para elaborar uma boa tradução. O bilingue consegue tornar-se entendido quando verte uma frase de um idioma para outro, enquanto que o tradutor tem que ler, entender e manter idéias entre duas línguas, de maneira que transmita o significado original de maneira mais perfeita possível. Daí porque traduzir é uma tarefa exaustiva, pois ninguém consegue expressar idéias de outro idioma sem compreende-lo profundamente. Um grande tradutor é um verdadeiro lapidador de palavras! E todas estas qualidades foram incorporadas pelo nosso conterrâneo, pois ele traduziu, de maneira magnífica, as melhores obras de um dos maiores escritores que a humanidade já produziu, o russo Fiódor Dostoiévski que, para muitos, é o mais completo escritor de todos os tempos.

Começou a década de setenta e ele, completamente preparado para sua missão intelectual, resolveu retornar ao Brasil. Ciente dos riscos que corria, evitou retornar para São Paulo, onde era conhecido e fora preso, vindo a escolher o Rio de Janeiro para viver. Na Cidade Maravilhosa, deu continuidade a sua carreira acadêmica, iniciando o curso de Letras, tornando-se Mestre e Doutor pela PUC do Rio. À medida que sua reputação de grande tradutor foi se firmando, e depois que obteve o título de Doutor,  tornou-se Livre-Docente em literatura russa pela USP.

Um fato importantíssimo na sua carreira de tradutor  foi ter conhecido, ainda na Rússia, o famoso editor Ênio da Silveira, dono da lendária editora Civilização Brasileira, uma espécie de QG dos intelectuais e artistas que se opunham à censura e à repressão da Ditadura Militar. Ao retornar para o Brasil, Paulo o procurou, e ele logo lhe encomendou a sua primeira tradução direto do russo, que serviu de preparação para o primor dos trabalhos futuros.

Desse trabalho inicial, outros surgiram e ele foi consolidando a fama de grande conhecedor do idioma russo, a ponto de já ter traduzido 33 obras ao português. Contudo, foi a partir de 2001 que ele tornou-se conhecido do grande público ao traduzir magistralmente um dos romances que muitos consideram o maior de todos já escrito, o “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski.

Além de “Crime e Castigo”, no espaço de quinze anos, ele conseguiu traduzir as obras mais famosas do maior escritor russo, que são “O Idiota” (2002), “Os Demônios” (2003), “Os Irmãos Karamázov” (2008) e “O Adolescente” (2015).

De todos estas traduções, a do “Crime e Castigo” teve o maior impacto, pois continua vendendo bem até hoje, a ponto de ser a obra mais lida nos presídios do Brasil !! O motivo é porque a temática desse romance aborda a culpa e o crime. Penso que a grande aceitação deste romance no Brasil é uma prova de que, por aqui, existem muitos leitores exigentes.

A grande qualidade do seu trabalho foi, ao longo dos anos, sendo reconhecido por eruditos e leigos, a ponto de sua trajetória intelectual (e de vida) ter sido tema de diversos estudos e reportagens nos mais importantes órgãos de comunicação do Brasil (não só da áreas cultural), tais como a Folha de São Paulo, o Estadão, as revistas  Época e Veja, sendo até um dos convidados do Jô Soares (a entrevista pode ser vista através do youtube).

Tive o privilégio de ter sido o primeiro a revelar sua existência “pacata” aos  lavradenses, em 2009. No ano seguinte ele foi homenageado em sessão solene na Câmara Municipal por seus conterrâneos. Ao longo do tempo ele recebeu os mais importantes prêmios de seu campo de atuação, como o Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional (2002), o Prêmio Jabuti de Literatura (2005), o Prêmio ABL de traduções da Academia Brasileira de Letras (2009), até culminar com a maior de todas as honrarias culturais concedidas pela República Russa, a Medalha Puchkín (2012).

Numa conversa informal, ele me revelou que o grande prêmio de sua vida foi a Comenda Ademário de Souza, concedida pela Câmara Municipal de Pedra Lavrada.  Penso que isso faz sentido, pois é raro que nossos grandes méritos sejam reconhecidos por nossos contemporâneos enquanto vivemos.

A educação, por influir por toda a vida, deve ter a primazia, pois o homem tende a ser o que a educação lhe proporciona. E Paulo de Badé superou todas as suas limitações intelectuais, dando uma contribuição ímpar para todo o mundo que fala português e tornando-se um exemplo vivo para todos nós que nascemos numa região pequena e humilde entre as humildes. E tudo começou em Picuí, no antigo Distrito de Pedra Lavrada..

A cultura concedeu-lhe um passaporte para a eternidade, pois o seu grande primoroso trabalho intelectual  perdurará.