Crianças venezuelanas se arriscam a cruzar rotas ilegais para estudar no Brasil.

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Vestindo uniformes escolares, dezenas de crianças venezuelanas caminhavam sob o sol a pino e um forte calor. Percorriam uma rota clandestina, única saída para quem precisa atravessar a fronteira da Venezuela com o Brasil.

Desde que Nicolás Maduro mandou fechar a fronteira, há dois meses, e as aulas começaram, os estudantes que moram do lado venezuelano e frequentam escolas na cidade de Pacaraima, em Roraima, se veem forçados a enfrentar o risco das “trochas”, caminhos ilegais que ligam os dois países.

Na travessia, os adolescentes e crianças que moram na cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén, vizinha de Pacaraima, têm que passar por militares venezuelanos armados, sob os quais pesam frequentes relatos de extorsão para permitir a passagem.

Alguns fazem o percurso nas trilhas, que dura entre 15 e 30 minutos, em grupos acompanhados por adultos. Outros vão com os pais e há ainda aqueles que enfrentam o caminho sozinhos.

Segundo a Secretaria Municipal de Educação de Pacaraima, são cerca de 500 estudantes da rede municipal que moram no lado venezuelano da fronteira e se veem forçados a fazer o caminho. O movimento não é recente, mas se intensificou à medida em que a crise no vizinho sul-americano se intensificou.

Com fronteira aberta, os alunos trafegavam livremente pela BR-174, que liga Pacaraima e Santa Elena. Os municípios, classificados como “cidades-gêmeas”, têm acordos para facilitar a travessia regular, mas agora, com a fronteira bloqueada, existem três rotas clandestinas principais onde há fluxo de pessoas, e duas delas foram fechadas para veículos.Monitora acompanha estudantes por rota clandestina na fronteira entre Brasil e Venezuela: 'levo 70 crianças por dia' — Foto: Emily Costa/G1

Enquanto atravessava uma “trocha” com os filhos, um garoto de 13 anos e uma menina de 8, uma mãe venezuelana contou que por vezes eles caminham sob a mira de militares venezuelanos fortemente armados.

“Depois que passamos pela ‘trocha’ há pontos de controle com mais militares pelo caminho. Temos medo, mas não há outra saída”, contou a mãe.

“Há dias em que os militares não nos deixam passar, como na semana passada quando ocorreram reuniões na aduana venezuelana. Meus filhos só podem estudar quando os militares permitem”.

Na escola municipal Casimiro de Abreu, que fica a poucas quadras da fronteira, 294 alunos moram do lado venezuelano, o que equivale a 40% do total de 758 estudantes da unidade de ensino que tem do 3º ao 6º ano, um número que vem crescendo nos últimos anos.

Em 2016 eram 76 estudantes de Santa Elena na escola, número que foi a 78 no ano seguinte e deu um salto para 211 em 2018. Neste ano, além dos 294 que já frequentam a Casimiro de Abreu, há 123 em lista de espera por vagas.

Crianças passam por militares venezuelanos armados para chegarem às suas casas em Santa Elena de Uairén — Foto: Emily Costa/G1 Sem restrições

Segundo a Secretaria Estadual de Educação, não há restrições para matrículas de alunos estrangeiros, mesmo os que moram em outro país.

O mesmo acontece na Secretaria Municipal de Educação de Pacaraima: no caso específico das crianças que moram na Venezuela, para a matrícula basta que o estrangeiro apresente algum documento brasileiro, como CPF ou Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) fornecido pela Polícia Federal, e a documentação escolar traduzida.

A crescente presença de estudantes venezuelanos em Pacaraima coincide com o agravamento na situação no vizinho sul-americano. O país enfrenta uma grave crise política e econômica que tem se aprofundado nos últimos anos com escassez de comida, remédios, hiperinflação e insegurança.

Na semana passada, confrontos e manifestações ocorreram após o autoproclamado presidente Juan Guaidó convocar as pessoas a irem às ruas para derrubar o regime chavista que diz que seus opositores fracassarão. Em paralelo, o número de venezuelanos que fogem para o Brasil registrou um pico.

“Muitos pais escolhem matricular seus filhos em Pacaraima porque a educação na Venezuela está precária. Eles dizem que praticamente não existem mais professores porque muitos já emigraram”, explica Francimar Sousa, diretor da escola Casimiro de Abreu.

Sousa afirma que além das dificuldades enfrentadas pela crise na Venezuela, um outro fator atrai ainda mais os estudantes venezuelanos ao lado brasileiro: a merenda escolar distribuída de graça na hora do intervalo.

“É visível que o lanche que entregamos aqui, que às vezes é insignificante para os alunos brasileiros, é muito importante para eles. Acredito que em muitos casos a merenda escolar é a única refeição que eles fazem ao dia e é comum que alguns peçam mais comida, até para levar para casa na Venezuela”.

“Com essa dificuldade para ir e vir eles acabam chegando mais tarde e saindo mais cedo das aulas, porque o trajeto é difícil. Tem poeira, alguns gripam”, resume a professora Alsione Subaran. “Quando chove eles chegam sujos”.

Uma mulher venezuelana que trabalha como monitora e ajuda na travessia dos estudantes conta que todos os dias caminha com ao menos 70 alunos por rotas ilegais.

“Vamos cantando, nos mantendo ocupados e ao mesmo atentos para que ninguém se perca no caminho. É cansativo”, relata.

Segundo ela, o percurso por esse trecho não é tão difícil para os maiores, mas se torna uma penúria para os menores.

“São meninos e meninas com idades entre 3 e 13 anos fazendo isso todos os dias. Pedimos aos guardas que nos deixem passar pela fronteira oficial, mas eles dizem que não podem e o máximo que nos deixam é ir por aqui”, disse.

A fronteira foi fechada na noite de 21 de fevereiro em retaliação à decisão do governo brasileiro de, junto com os EUA, enviar remédios e comida ao país a pedido de Guaidó. Para os chavistas, a ação seria uma intervenção externa na Venezuela.

“É incomodo e triste ver pais que querem dar uma educação melhor aos seus filhos tenham que vê-los passarem por isso para poderem estudar porque na Venezuela eles não teriam acesso à educação que têm no Brasil”.

Carregando uma sombrinha infantil com desenhos do Mickey Mouse, uma menina caminha ofegante. Tem só oito anos, mas descreve com clareza o que sente. “Eu tenho medo das pistolas que eles [militares venezuelanos] carregam. Elas são gigantes”.

G1