Picuí já existia antes do cólera

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Picuí já existia antes do cólera

É muito difícil aceitar que em pleno século XXI apareçam doenças contagiosas e potencialmente mortais, ante o grande avanço das ciências médicas e do sanitarismo. Vendo e vivendo todo o estresse de uma pandemia rondando nossa gente, eu me transporto para o estado de espírito dos nossos antepassados quando apelaram para São Sebastião (santo protetor contra a peste, a fome e a guerra) em meio a mortes e sofrimentos indizíveis, no longínquo ano de 1856, colocando nossa cidade oficialmente nos documentos oficiais e nos nossos corações.

O caminho feito pela pandemia do século XIX até a nossa região é conhecido. O historiador Irineu Pinto relata que no primeiro dia de agosto de 1855 a Assembleia Provincial resolveu fechar as suas portas até primeiro de outubro devido as notícia de que o cólera estava se aproximando, tendo tomado a providência de reunir uma junta de médicos e de estudantes de medicina para decidir o que fazer. No ano seguinte o mal chegou à Paraíba, como descreve o relatório enviado pelo Presidente da Província à.

Assembleia, pelo qual podemos recriar as condições de higiene da capital paraibana naquele tempo: falta de cemitérios públicos, produtos alimentícios de má qualidade vendidos no comercio, único hospital em estado de ruína, abatedouros de animais precários e contíguos à zona urbana, lixo e lama no meio das ruas, etc. Foram tomadas as providências possíveis na época para sanar os problemas citados na nossa capital, mas parece que não serviu muito, pois houve grandes perdas humanas no litoral.

As cidades do interior paraibano tiveram pouquíssima atenção, se levarmos em conta que o governo apenas enviou folhetos com orientações médicas e de higiene para que pessoas escolhidas em cada localidade ensinassem os demais a se protegerem. Merece atenção especial a correspondência enviada pelo governante paraibano para um ministro do Império, pela qual é possível ter uma noção da precariedade em que viviam os nossos antepassados sertanejos. Assim que é que só existia um médico em Areia e práticos de medicina em Campina Grande e Mamanguape (não se mencionou a existência de profissionais da saúde em Pombal, Sousa ou Catolé do Rocha), a maioria dormia no chão mesmo, a água de beber era de má qualidade (desconheciam o papel esterilizador da sua fervura) e os alimentos eram mal manipulados em termos de higiene básica. E, sabemos hoje das deficiências nutricionais da dieta sertaneja, com o agravante de que as secas periódicas deixavam nossos antepassados com sérias deficiências imunológicas. E o cólera “chegou chegando” pelas estradas que ligavam Pernambuco, atingindo primeiro São João do Cariri e rapidamente se espalhando pelo interior paraibano por caminhos estreitos, sendo todo o Seridó/Curimataú atingido em pouco tempo.

E o resultado foi que mais ou menos 10% da população paraibana faleceu vítima do cólera !

Com essa trajetória parecida com uma tragédia grega, certamente foi sedutora a tese de que Picuí surgiu a partir de uma promessa que resultou na escolha do nosso Santo Padroeiro, culminando com a ereção da igreja. Se tivessem pesquisado com atenção a antigos documentos existentes teriam visto que Picuí já existia antes do cólera e da construção da Matriz de São Sebastião !! É o que podemos concluir depois que verificamos as anotações de dois dos nossos maiores historiadores.

Coriolano de Medeiros no famoso Dicionário Corográfico do Estado da Paraíba, página 200, escreveu que em Picuí era sede de um juízo de paz desde 1841 !! O Juiz de Paz era um representante eleito, leigo e que não recebia pagamento, com a incumbência de atuar nos assuntos de pouca importância, tais como promover conciliações, resolver dúvidas sobre estradas particulares, pastos, águas usadas na agricultura ou no minério, direitos de caça e pesca, nos casos de danos causados por escravos e animais particulares. Ele tinha o poder de dispersar ajuntamento de pessoas que julgasse perigosas, podendo convocar a polícia para tal. Quando ocorria um crime, era o juiz de paz tinha que se encarregava de reunir provas. Era ele quem decidia sobre a aplicação dos regulamentos municipais, prevenir ou destruir quilombos com escravos fugidos, enquadrar os bêbados e prostitutas.

Também tinha a obrigação de proteger as matas pertencentes ao Estado e de notificar o presidente da província quando eram descobertos

recursos animais, vegetais ou minerais úteis. Portanto, essa importante magistratura só poderia ser criada em um lugar em que houvesse vida urbana, um ajuntamento de casas considerável e muitas pessoas próximas umas das outras.

Outro relato que comprova a existência de Picuí muito antes de 1856 é que no famoso relatório preparado pelo mais operante dos presidentes do tempo do Império, Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire Rohan ou B. Rohan (1858), há a citação da construção do “Cemitério de Picuhy” à custa dos seus moradores. Observem que o nosso maior dirigente não citaria o nome de nossa cidade em um longo relatório que abrange a Paraíba inteira se ela não tivesse importância real em termos de riqueza e de população. E como sabemos da morosidade da construção de uma cidade, Picuí não estaria tão importante para ser citada num documento público dessa magnitude com menos de dois anos de fundação !!

Assim, vê-se que Picuí já existia muitas décadas antes da ereção da Matriz de São Sebastião, que todos consideram o marco da criação de nossa cidade. A água boa da Maricota e a fertilidade do rio Picuí fizeram com que nossa cidade ficasse no meio do caminho de uma importante via de ligação entre o Brejo Paraibano e o interior do Rio Grande do Norte, surgindo um arruado disforme provavelmente ainda no período colonial. A construção da primitiva igrejinha com a escolha do Padroeiro foi um marco, no sentido de que foi iniciada a urbanização racional de Picuí, a partir da doação do patrimônio à Igreja, pois a referência religiosa era essencial na época para o reconhecimento de uma urbe de respeito. Com isso, foram traçadas as primeiras ruas oficiais e doados terrenos, possibilitando que os moradores residentes em casas sem prumo nem direção, o que era típico em nossas vilas coloniais, mudassem suas vivendas para um local pré- traçado e salubre, o núcleo inicial da nossa amada cidade, a Praça João Pessoa, com a vantagem extra de ficarem bem próximos do Santo Protetor !!

Sabemos que o cólera é causado por uma bactéria que infecciona o intestino, transmitida sobretudo pela ingestão de água ou alimentos contaminados. Se não for tratada logo, segue-se uma desidratação intensa que pode conduzir o infectado à morte. A doença está ligada diretamente ao saneamento básico e à higiene, tudo o que não havia na época. O coronavírus é muito mais perigoso do que o vibrião colérico, uma simples bactéria, o que torna a atual epidemia um grande desafio para ser erradicada.

A saúde mais vigorosa é o ponto de partida das doenças que podem ser mortais. Muitas vezes estamos há décadas com saúde de ferro, com a aquela confiança ilimitada que essa situação trás e nunca lembramos que a doença e a calamidade sempre estarão à espreita, capazes de transformar a paz e a tranquilidade numa espécie de prisão solitária dentro de casa com a ideia de que o fim está próximo. Tudo isso tem repercussão o medo ancestral que sentimos pelos microorganismos, com o agravante de que muitas vezes as coisas produzem maiores efeitos de longe que de perto, pois as doenças parecem atormentar mais quando estamos bem de saúde. Pensem nisso, caros conterrâneos, para que não soframos mais do que o necessário.

Alisson Pinheiro