O DIFÍCIL SÉCULO 18 EM PICUÍ

Por - em 6 anos atrás 4731

Depois que foram derrotados os indígenas que resistiam a chegada dos nossos antepassados, estes foram chegando da região costeira entre Mamanguape e Recife, para ocupar a terra em nome dos proprietários legais; vieram desempenhar a função de vaqueiros, de moradores, de rendeiros ou de artesãos. Esse movimento migratório mirava as “ribeiras” dos nossos rios principais (Seridó e Acauã ou Picuí), os nossos primeiros caminhos.

Iremos considerar o ano de 1701, data das primeiras doações de terras (foram duas) efetivas e comprovadas no Seridó Paraibano, embora somente a partir de 1704 foram aparecendo nestes documentos os nomes tão familiares de “Cubati”, “Cuité”, “Picuí”, “Corujinha”, “Quinturaré …. Na famosa doação contida na Carta de Sesmaria nº 48, de 26/12/1704, está a “certidão de batismo” de Picuí, sintetizada nestas linhas: (…) descobriram no sertão desta Capitania um riacho chamado pela língua do gentio de Pucuhy, em terras devolutas e nunca dadas a pessoa alguma (…). Esses documentos oficiais, salvos da destrui ção pelo abnegado historiador João Lyra, simbolizam o nascimento da nossa região querida, a nosso entrada para a História.

O livro “Famílias seridoenses” (José Augusto de Medeiros), aponta vários sobrenomes destes primeiros desbravadores: Araújo, Dantas, Medeiros, Galvão, Garcia, Bezerra, Monteiro, Nóbrega, Silva, Fernandes, Azevedo. Outros epítetos, tais como “Silva”, “Lima”, “Barros”, “Cavalcante”, “Oliveira”, “Cunha”, não aparecem nas doações legais, o que torna claro a dimensão do fluxo de gente que aqui chegou para começar as suas vidas. Inscritos ou não nas cartas de sesmarias, todos eram pessoas humildes, de pouquíssimas letras, que vieram fazer a vida no Seridó, em meio a “inexorabilíssimos trabalhos”.

Nossos avós, portanto, foram pessoas simples que se esforçaram para tornar o nosso pedaço de Seridó um lugar aprazível para se viver, mesmo sem ter, majoritariamente, a posse legal das terras com que tiravam o seu sustento. Esta ausência dos proprietários legítimos das terras foi comentado por Euclides da Cunha n’Os Sertões, nestes termos: “O fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas de suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos”.

O resultado foi que a maioria destes colonos humildes trouxe ou formou famílias aqui e se tornou proprietária. Portugueses nativos vieram para cá também, mas somente depois de consolidadas as fazendas; a maioria veio se casar com as filhas dos fazendeiros mais ricos, uniões arranjadas, conforme os costumes da época, por ser uma maneira de se ganhar prestígio social (eram os dominadores) e “embranquecer” a família, num tempo em que a escravidão era a base social e econômica do Brasil.

É possível traçar um perfil dos primeiros colonos, nossos avós distantes, a partir dos testamentos do século 18 que foram salvos das traças por José Augusto de Medeiros (de Caicó) e por Wilson Seixas (de Pombal).  Um desses pioneiros foi Inácio da Silva Mendonça, natural do recife, falecido em 1752, cujo testamento é o documento mais antigo resgatado de um cartório do Seridó. Ele tinha fortes laços na área litorânea, no Recife (onde nasceu), no Seridó (onde trabalhou e construiu patrimônio), em Natal (de onde veio o magistrado que processou seu inventário) e na zona da mata paraibana (onde faleceu); veio trabalhar como vaqueiro e acabou se tornando fazendeiro, devido ao instituto do recebimento de um quarto dos bezerros nascidos depois de um certo tempo trabalhando de graça para o dono da terra. Como membro da primeira geração de seridoenses, ainda manteve contatos afetivos com a região litorânea. Outro caso incomum de êxito financeiro e social destes primeiros colonos  é o do ex escravo Feliciano José da Rocha que se tornou fazendeiro nas proximidades da cidade Acari exercendo a função de vaqueiro, conseguindo  inclusive casar uma filha com um português !!

A adaptação destes primeiros colonos foi rápida e logo se multiplicaram, pois nos espaço de algumas décadas surgiram os primeiros arruados de nossa região: Cuité (1768) e Pedra Lavrada (1792). Picuí não existia no século 18, mas as fazendas estavam bem implantadas às margens do rio Acauã.

Interessante é que, num dado momento, o fluxo migratório de pessoas para o Seridó cessou. Os motivos são compreensíveis: ao se completar a posse da terra, no início do século XIX, as famílias se multiplicaram e o espaço geográfico ficou preenchido, extinguindo-se o interesse de se chegar a uma região de péssimas estradas e de clima instável.  Esse fato fez surgir o problema do casamento entre parentes, algo natural se se for observar o isolamento dos que viveram há trezentos anos e o código de conduta sertanejo antigo, pouco favorável ao encontro espontâneo entre jovens; como as estradas eram difíceis de transpor e a vinda de pessoas novas foi cessando, as pessoas se casavam com alguém que vivia nas redondezas, um primo legítimo ou até um tio..

Portanto, todo o século dezoito foi de construção das estruturas das primeiras fazendas e a base econômica era a pecuária; não exista ainda o algodão mocó, o jumento  nem as vazantes !! Nesse tempo ainda sobreviviam índios puros, certamente adaptados ao trabalho pastoril, enquanto que as mulheres tornaram-se concubinas ou esposas desses colonos, originando o povo mestiço do Seridó. A população começou a crescer de tal forma, que fez surgir os nossos primeiros núcleos urbanos já citados. É certo que quanto mais aumentava a população, mais o latifúndio original ia se subdividindo,  no que atingia a viabilidade comercial de um solo sem pre ameaçado por  secas devastadoras. E a vida destes parentes remotos eram simples ao extremo, como se vê pelos bens arrolados pelo citado Inácio da Silva que julgou descrever no seu testamento, como bens valiosos, dois baús, um novo e outro velho !!

Curioso é que no século 18 a vida política e econômica do Seridó Paraibano girava em torno das cidades de Pombal e de Caicó, as mais antigas vilas das proximidades. Somente depois que a região do Brejo e o núcleo de Campina Grande foram se desenvolvendo economicamente e que as estradas foram melhorando, foi que nossos antepassados se voltaram para o Leste, situação que perdura até o presente.

O caos do início foi se tornando ordenado pelo árduo trabalho dos nossos antepassados, cuidando do gado que iria abastecer o litoral, arando a terra nos anos de bom inverno, até que a região do Seridó, por conta da política, tornou-se paraibana e potiguar ainda antes da Independência do Brasil.  Mas se a política  nos dividiu, a natureza nos une num laço indissolúvel, porque o clima, a vegetação e o povo são homogêneos. Os rios Seridó e Acauã, definidores de nossa identidade, nascem no lado paraibano, mas correm em direção do Seridó potiguar. Esses dois rios emblemáticos ligam-nos,  irremediavelmente, para todo o sempre.

Álisson Pinheiro é Natural de Picuí-Pb, residiu também em Cubati e Baraúna, tornando-o um autêntico filho do Seridó e do Curimataú paraibano. É formado em Direito pela UFPB, com Pós-Graduação em Direito do Trabalho. Trabalha no TRT-AL onde vive na capital Maceió.