OS ANOS 80 EM PICUÍ

Por - em 7 anos atrás 1583

A realidade da vida humana é sempre móvel, mas existem épocas em que se acelera, atingindo velocidades vertiginosas. Assim aconteceu com a década de Oitenta do século passado que, apesar de ser sido curta para a minha geração que viveu nos centros urbanos do Seridó Paraibano, foi um reboliço. Curta porque houve aquela seca horrível, entre 1982 e 1983, justamente quando a maioria de nós estava chegando na adolescência; foi um período muito triste, porque houve saques e os alimentos, mesmo para quem tinha dinheiro para adquiri-los, eram de péssima qualidade. Além da seca, houve o fim da lavoura algodoeira, vitimada pelo bicudo, socorro de muita gente nos tempos de crise. E a seca também trouxe a emergência, o balcão da economia e água de má qualidade que se transp ortava em burros, bicicletas, no ombro. Todos estes fatos horríveis, atrasaram de certa forma o tempo feliz que se seguiu a partir do inverno abundante de 1984.

E mesmo com tantos problemas, a década de 80 foi inesquecível e até revolucionária, no sentido de que houve uma mudança profunda nos gostos e no comportamento em desacordo com o estilo de vida vigente no Seridó há muitas gerações. As boates surgiram na maioria das cidades vizinhas e o rock nacional chegava com estardalhaço, inspirado nos ícones roqueiros americanos e europeus, capitaneados pelo astro pop Michael Jackson. Era toda uma geração que amadurecia envolvida num surto de liberdade embalado pelo rock nacional; era quase como uma bagunça meio infantil e engraçada; em muitos casos não era nada mais do que uma afirmação do poder adolescente de uma poderosa geração, com todos os hormônios a mil ao mesmo tempo. Mesmo assim, suas implicaçõ ;es foram extraordinariamente profundas, com impacto que se prolonga até hoje.

Não podemos esquecer que o Brasil estava saindo da tenebrosa ditadura e a rede Globo apareceu após o súbito fim da comportada TV Tupi. A estrada asfaltada, de Soledade a Pícuí, foi construída, facilitando a circulação de todos. Em locais não tão distantes, como Parelhas, surgiram bandas de ótima qualidade. Entramos na era dos videoclipes, uma grande novidade que todos apreciavam. A Rádio Cenecista chegou em Picuí e a região entrara na era das telecomunicações com os postos da Telpa sendo erguidos em todas as cidades quase que ao mesmo tempo. Novas antenas transmissoras fizeram melhorar as imagens, agora coloridas, dos aparelhos de TV, e também vieram os videocassetes, sendo que estas novidades televisivas foram fatais para o fechamento do Cine Guarany.

Na Democracia a liberdade tem sempre significado uma franquia para sermos o que somos autenticamente; e nessa onda foi que muitos gays saíram do armário, não sem uma carga de sofrimento pessoal. A ousadia de alguns gays picuienses ajudou para que muita gente assumisse sua (bi)sexualidade com menos culpa e sem temor, num movimento irresistível.

Hoje em dia a liberdade sexual é como se fosse garantida pela Constituição de 1988, um direito que não nos exige muita coragem para dele se valer, e que está em perfeita harmonia com a busca da felicidade. Na verdade, a desinibição total de que se aproveita muita gente, sem sequer se dá conta do que está fazendo, deriva da audácia da juventude dos 80 e da vitória extraordinária que a moçada conquistou pela força de um comportamento inspirado, em grande parte, nas novelas e videoclipes mostrados na telinha. A Revolução sexual que começou nos Estados Unidos, trinta anos antes, chegou no Seridó com um certo atraso, mas chegou de maneira avassaladora.

E foram enfraquecidos muitos tabus existentes, antigos e arraigados. Quem “merendasse” antes do tempo, tinha que casar, mães solteiras eram muito discriminadas (e transmitiam esse preconceito à prole) e sempre existia o risco, para as mulheres, de “ficarem faladas”. Até os anos 80, quando um casal queria antecipar a vida conjugal, “fugia” no carro de um amigo ou conhecido. Perdi a conta dos casais que “fugiam” em carros de amigos para apressar um casamento precoce.

O exercício dessa liberdade foi facilitado pelo fato de que em nossas pequenas cidades, não éramos vigiados constantemente; os nossos pais não ficavam o tempo todo preocupados. Enquanto isso, os filmes, as novelas, o advento da psicologia, criaram o espaço em que floresceu aquela educação a serviço do proibido. O afrouxamento da vigilância, o espaço cada vez mais concedido àquela garotada que recebera da televisão as armas da desobediência, fez com que o velho controle familiar afrouxasse, dando lugar a mais diálogo entre pais e filhos.

Quase todo mundo da minha geração costumava frequentar festas, de Soledade à Cuité, sem maiores questionamentos em casa. Viajávamos de carro, de ônibus ou de moto para estes bailes, não sem perigos. Éramos adolescentes !! Talvez nosso pais fossem mais lenientes porque ainda não tinham surgido as perigosíssimas drogas químicas que afligem às famílias no presente. As músicas que apreciávamos, eram, em geral, de boa qualidade. Os blocos de Carnaval tinham nomes ingênuos, como “TropCanalhas”, “Karamimoso” ou “Turma do Pinico”. Na rádio Cenecista tocava Alceu, Caetano, Chico, Gal, Elba e uma trupe de talentos que está meio esquecidos da nova geração que tomou gosto pelos forró ostentação e sertanejo universitário.< /span>

Ninguém que viveu a adolescência naquela época se dava conta da transformação que estava acontecendo. Éramos muito simples e comportados, se for comparar com os costumes “ostentatórios” atuais. Hoje em dia, essa simplicidade esvaiu-se diante do consumismo exacerbado, fruto em parte da melhoria da renda e porque a indústria multiplicou e barateou quase todos os artigos à venda. Um efeito involuntário foi que o marketing existente nas mídias televisivas e sociais expandiu as necessidades e muita gente passou a delinquir não para prover as necessidades básicas, mas por inveja do status do outro.

O resultado deste “progresso” é que quase todo mundo que eu conheço no Seridó Paraibano está melhor materialmente do que seus pais e avós. Sim, as condições de vida melhoraram, com o único inconveniente de que o dinheiro passou a mandar mais do que nunca, provocando muitas distorções morais !! Por isso é que vivemos em um tempo de crise, mesmo tendo a Constituição de 1988 concedido tanta liberdade e incrementado os programas sociais que ajudaram muito os mais carentes.

Uma sociedade é um conjunto de indivíduos que mutuamente se sabem submetidos à vigência de certas opiniões e valores. Assim, não há sociedade sem a vigência efetiva de certa concepção do mundo, que atua como uma última instancia a que se pode recorrer em caso de conflito. E o que aconteceu foi que, a partir dos anos oitenta, o patriarcalismo que permeava os antigos costumes sertanejos, aquele poder severo da figura paterna, foi duramente atingido. De fato, existia muita opressão na família patriarcal, mas o seu enfraquecimento excessivo foi muito nocivo para todos.

Nossos antepassados lutaram sem cessar na agricultura para que fosse viabilizada a geração atual. Passaram por secas terríveis, falta de água, por alimentação inadequada, ignorância opressiva e imensa mortalidade infantil. Eles foram pessoas muito simples nos costumes e no consumo, e parece que eram felizes, apesar da crônica escassez material. O resultado de tanto trabalho, foi que depois de doze ou treze gerações nosso Seridó tornou-se um lugar agradável para habitar; e os anos 80 foi o ápice de uma alegria de viver que está hoje ofuscada pelos problemas citados. Apesar de tudo isso, a juventude atual, tão cheia de facilidades para escolher seu próprio destino, corre o risco de chegar á maturidade sem aptidão por culpa das drogas, da ociosidade e da relativa abundância que provocam a acomodação de muita gente talentosa.

Assim, os jovens do nosso Seridó gozam do ócio florescente que lhe foi proporcionado por gerações que viveram numa simplicidade extrema, que lutaram muito para legar-nos os seus genes e seus valores. A década de 80 adicionou uma alegria marcante a essa simplicidade ancestral, com inspiração na democracia que nascia e num movimento musical inesquecível. Seus reflexos estendem-se até hoje nos costumes e na maneira mais independentes de encarar a vida, embora seus ganhos estejam ameaçados por um comportamento atroz de grande parte da juventude do presente.

Um poeta disse que “o tempo não pára: só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo”. Sim, ele tem razão, pois é muito grande a saudade do tempo perdido que ficou da inesquecível década de 80.

Alisson Pinheiro