O DOUTOR FELIPE ANTES DA CNEC

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Poucos atinam para o fato de que dos tantos bilhões de pessoas que já nasceram nesta Terra, somente uma pequeníssima fração faz (e fez) a diferença, com sua energia criativa em prol do progresso da humanidade; estes são os grandes realizadores, os heróis de todas as épocas ! Somos como que parasitas dessa minoria que, às vezes com o sacrifício da própria vida, cria as tecnologias e os códigos de conduta que transformam o mundo, mas sempre por intermédio da Educação, a porta estreita por onde passam os gênios. Daí ; porque é admirável o fato de pequenino Seridó Paraibano tenha um filho seu no panteão dos grandes educadores do século XX.

Ele nasceu no longínquo 1921 nas proximidades da mítica Serra do Pedro; era a época atrasada da República Velha. Sua infância foi passada na zona rural, num tempo em que as crianças davam duro no roçado, que não existiam os antibióticos salvadores, nem a proteção dos conselhos tutelares. Ele mesmo conta que trabalhava de pés descalços, levando furadas da infinita quantidade de espinhos existentes na caatinga, comendo juás e umbus para mitigar a fome e utilizando remédios folhas e raízes para curar as doenças. Diversão era coisa rara, pois só “desopilava” nas pouquíssimas festas religiosas e nos casamentos; e ainda tinha que ser valente para suportar os temores gerados pelas histórias terríveis que lhe contavam,  envolvendo lobisomens, almas penad as ou bandidos que poderiam chegar a qualquer momento para fazer o mal às crianças.

Apesar de tudo, sua vida despontou num período em que o interior paraibano tinha superado o grande isolamento que durou até o século XIX. Carros já existiam na região e as estradas tinham melhorado muito. O ensino básico já era acessível e sua irmã mais velha, alfabetizada, proporcionou-lhe os primeiros rudimentos de leitura. E para complementar essa sua primeira formação cultural existia, embora distante, a escolinha da professora Nativa que ele passou a frequentar.

O aprendizado contínuo exigiu que fosse cursar o primário em Picuí, entre 1933 e 1935, na única escola pública daquele tempo. E não demorou muito para que o professor Manoel Pereira observasse que o menino Felipe era um aluno brilhante, algo fácil de perceber para os que exercem o magistério com amor. E fico a imaginar a perplexidade desse mestre-escola com a inteligência daquele rapazinho que dominava rapidamente tudo que lhes era ensinado ! O resultado foi que ele passou a aconselhar insistentemente a seus pais que o levassem para continuar os estudos em Campina Grande. Quando finalmente este consentimento foi obtido, faltava combinar com o jovem Felipe que, bastante apegado à família e a sua rotina, chegou a pensar em não ir. Porém, a força que ele seguisse o seu de stino brilhante era irresistível, e ele foi…

Passou a estudar no colégio Pio XI, uma escola que tem um lugar de destaque na História da educação de Campina Grande. Fundado em 1931, passou a funcionar à Rua João Pessoa, a partir de 1935, já então com reputação educacional consolidada. Sua criação foi uma das grandes realizações do grande Dom Adauto, então no final da sua longa permanência como primeiro arcebispo de João Pessoa e da Paraíba inteira. No Pio XI, além de Felipe Tiago, estudaram Ronaldo Cunha Lima, Félix Araújo e o ex-deputado Evaldo Gonçalves, dentre outros vultos de destaque na História da Paraíba. Até hoje o seu fechamento, ocorrido em 2004, é visto como uma verdadeira catástrofe para a cultura campinense.

Naquele tempo, o ensino gratuito custeado pelo Estado só existia precariamente no ensino primário; do sexto ano em diante, só na rede privada (o Estadual da Prata surgiu em 1953). E os encargos financeiros para mantê-lo no Pio XI eram pesados para a sua família; por isso, ficou decidido que o jovem Felipe retornaria à casa paterna no ano seguinte. Contudo, logo apareceu a salvação para esse problema através do padre (e professor) Odilon Costa que, sabedor da inteligência do jovem, arranjou-lhe um emprego na própria escola, com intuito de viabilizar a sua permanência no educandário. Dessa época de formação, ele levou para Picuí uma novidade revolucionária: o grêmio estudantil, que deve ter sido uma grande novidade para os estudantes picuienses daquele tempo.

Quatro anos se passaram e ele colou grau no Pio XI, em 1940; tinha terminado o ensino fundamental !! Mas um acontecimento funesto iria eclipsar essa alegria, que foi a morte de sua mãe, a grande entusiasta do seu progresso escolar. Com o diploma do ensino fundamental nas mãos, ele retornou à Picuí órfão e triste, pois, a perda da mãe poderia significar o fim do sonho de cursar os estudos secundários no Recife, o trampolim para o almejado curso jurídico na velha Faculdade de Direito. Se sua aspiração era incerta com a mãe viva, agora tornava-se quase uma impossibilidade, já que lhes faltava apoio humano e condições financeiras para sobreviver numa grande cidade. E mais uma vez a providência divina  veio em seu auxílio, pois o Juiz de Direito conversou com o dentista da cidade, um recife nse, que aceitou hospedá-lo em sua casa, para que ele iniciasse a etapa dos estudos secundaristas na capital pernambucana.

Contudo, sua adaptação como hóspede dessa família rapidamente tornou-se difícil e ele já pensava em desistir, retornando à Picuí, até que, como por milagre, reencontra um amigo do tempo do Pio XI. O anjo, dessa vez, chamava-se Everaldo Luna que aplainou o caminho para uma vaga na casa do estudante do Recife. Após esse êxito, veio outro não menor, que foi ser admitido para estudar gratuitamente no curso preparatório para o ingresso na Faculdade de Direito, mediante a apresentação de uma declaração de pobreza.

Morar na Casa do Estudante de Recife foi o divisor de águas na vida dele, sob todos os aspectos. Primeiramente ajustou sua parca vida financeira ao ser contratado como porteiro e, em seguida, como bibliotecário da Casa. Mais importante ainda foi para sua vida intelectual e futuro de vida, passar a ter muitos livros à disposição e tempo para lê-los depois que se tornou bibliotecário da instituição. Sabemos o quanto valem os livros para uma alma sedenta de conhecimento e de sabedoria ! O resultado de tantas leituras foi uma sólida cultura pessoal, cujos indícios podemos constatar no embate vitorioso que ele sustentou com o celebrado historiador pernambucano Mário Melo, sobre a o lugar de nascimento do herói picuiense Silvino de  Macedo. E como ele escrevia bem!! Pena que sua vida repleta de atividades na CNEC não permitiu que ele escrevesse algo de valor para a posteriodade, com exceção do livreto sobre a origem picuiense de Silvino de Macedo.

Aqui vamos abrir um parêntese para refletir sobre quantos destinos não foram decididos pela leitura de um livro ou pelo contato com uma biblioteca !! Para o jovem Felipe, a leitura da obra do americano John Gunther, “O drama da América Latina” significou muito em sua vida. Primeiro porque ele, que vivia na pele o drama pessoal de ser um latino-americano pobre numa época difícil, mas de transformações, teve a consciência aguçada com a sistematização dos problemas do nosso continente encontrado neste livro. Contudo, esta obra não era uma somente a descrição de um drama continental, mas também a narração de histórias edificantes de pessoas que, com seus exemplos de vida, mostravam maneiras de enfrentá-lo.

E nada o impressionou tanto quanto a história de vida de um homem peruano chamado Victor Raul Haya de La Torre que, mesmo pertencendo à elite, dedicou sua vida a um projeto político inclusivo dos mais pobres. Haya de La Torre, além de pensador, foi político, fundando um partido de massas chamado APRA. Dentre outros feitos, ele implementou as chamadas “universidades populares” em seu país, que nada mais são do que organizações educativas e culturais, sem fins lucrativos já que seus professores são voluntários, visando promover a formação intelectual e profissional dos que não podiam estudar por conta da pobreza. Não era um fato novo, mas foi essa ex periência protagonizada por Haya de La Torre  que inspirou o jovem Felipe a criar com seus colegas a Campanha do Ginasiano Pobre (CGP), embrião da CNEC, um intenso movimento para trazer as luzes da educação às novas gerações incapacitadas de progredir devido à pobreza e, também, a falta de escolas.

É que ele sentiu na própria pele o significado da inexistência de boas escolas públicas e, por outro lado, a incapacidade dos governos em proporcionar educandários em número e qualidade suficientes para acolher a imensa massa brasileira que ansiava  pela educação, como forma de progredir na vida e, por consequência, o nosso país. Pondo em marcha o movimento, seus frutos cresceram, trazendo um futuro melhor para milhões de jovens.

Não deixa de ser interessante observar que ele chegou a tentar seguir aos passos do seu ídolo Haya de La Torre, pois teve um curto período de sua vida dedicado à militância política, cujo ápice foi assumir a prefeitura de Picuí durante nove meses. Mas ele logo viu que sua vocação era a humanidade inteira, e não o restrito mundo da política partidária. Após o fim do seu curto mandato como prefeito, houve uma grande festa na cidade para comemorar a sua formatura de bacharel em Direito. Porém, tampouco militou na advocacia pois, desde cedo, dedicou-se inteiramente a obra de sua vida, que fora a CNEC. A partir dos anos 60 do século passado, a obra estava sólida e sua reputação nas alturas; v eio a fase de reconhecimento (e de intenso trabalho) que nunca parou até o dia de sua morte.

O homem comum, ao se encontrar com este mundo tão repleto de escolas, pensa que elas sempre existiram, e nunca se lembra dos esforços de indivíduos excepcionais que a sua criação pressupõe, a começar de Aristóteles que fundou a Academia. Menos ainda admitirá a ideia de que a nobre função do magistério continua se apoiando em certas virtudes raras dos homens, cuja menor falta ocasionaria o imediato enfraquecimento e até o desaparecimento dessa magnífica construção.

É necessário não descuidar da educação das novas gerações, porque o tempo em que vivemos é de crise. Nem a religião nem a moral dominam a vida social e tampouco o coração da multidão. A cultura artística e intelectual é menos valorizada que há vinte anos. Resta só o dinheiro. Contudo, a trajetória de Felipe Tiago, que não acumulou bens terrenos, esse imperativo não se aplica. Ele foi um desses homens de virtudes raríssimas, que dedicou seu talento à construção da cidadania através da educação; não teria sido o que foi se não tivesse sofrido o que sofreu para obter sua formação escolar e intelectual. Sua vontade férrea construiu um monumento imorredouro, a CNEC; quando esta deixar existir, talvez também não existirá o homem “sapiens”, pois ficaria extinta a própria civilização humana, construída que foi pela e para a escola.

Certamente viver é ter que fazer alguma coisa determinada, é cumprir um encargo; A vida humana, por sua própria natureza, tem que estar dedicada a algo, a uma empresa gloriosa ou humilde, a um destino ilustre ou trivial. Na medida em que nos esquivamos de pôr nossa vida a serviço de alguma coisa, esvaziamos a nossa existência. Assim, a vida do doutor Felipe, voltada para um fim tão nobre foi plena e a luz do seu exemplo brilhará para o todo o sempre.

Por Álisson Pinheiro