SOBRE AQUELA PEDRA MISTERIOSA QUE EXISTE EM PEDRA LAVRADA

Por - em 8 anos atrás 1807

Em todo o território nacional aparecem pinturas e gravuras feitas em cavernas, lajes e blocos de pedras, prováveis marcas dos caçadores que foram ocupando lentamente o continente americano. De todos estes vestígios, as inscrições nas pedras são as mais chamam a atenção pela beleza de alguns exemplares; tais rochas com gravuras são denominadas “itacoatiarias”, ou pedras pintadas na língua tupi. Dentre todas, duas se sobressaem pela beleza: as existentes nas cidades do Ingá e em Pedra Lavrada. Enquanto que as gravuras (muito mais famosas) do Ingá preservaram o nome primitivo, a de Pedra Lavrada foi denominada “Pedra do Retumba”, em homenagem ao engenheiro Francisco Retumba que, em 1886, visitou o local, desenhou-a com perfeição, tornando-a conhecida internacionalmente.

O interesse pela Pré-História nacional é muito antigo, mas um estudo cientificamente bem dirigido é recente. Por isso, a falta de uma base científica sólida à respeito das inscrições rupestres paraibanas, fez surgir  interpretações fantásticas, como a de enquadrar os indígenas nos episódios bíblicos da Arca de Noé e das tribos perdidas de Israel ou criando para os nossos índios uma suposta ascendência israelita, grega babilônia, fenícia e até mesmo egípcia  !! 

Dentre as teorias explicativas do significado das inscrições nestas pedras que surgiram, o mito fenício ganhou a dianteira, capitaneado pelo deslumbramento por essa cultura por parte do alagoano Ladislau Neto, nosso primeiro “arqueólogo”, que fez seu doutorado na Sorbonne, em Paris, onde fora discípulo do renomado Ernest Renan. E os maiores indícios dessa presença fenícia estariam na Paraíba, principalmente na Pedra do Ingá, a figura rupestre mais famosa do Brasil e, em seguida, na denominada “Pedra do Retumba”, que, hoje em dia, encontra-se soterrada no leito de um rio, dentro do perímetro urbano de Pedra Lavrada. O grande historiador paraibano, Irineu Joffily, foi um grande entusiasta da “teoria fenícia”, haja vista seu deslumbramento com a cópia das inscrições de Pedra Lavrada que o engenheiro Retumba recém copiara e divulgara.

E essa discussão foi ganhando vulto ao longo dos anos. Enquanto que a famosa inscrição do Ingá era associada a seres alienígenas, a nossa Pedra do Retumba teve uma interpretação mais modesta, já que foi  enquadrada somente como uma inscrição fenícia ou grega. Vale salientar que essa tese da suposta colonização fenícia no Brasil perdura até hoje, apesar de sua falta de cientificidade. Os fenícios eram um povo da Antiguidade extintos há 2.200 anos que se tornou famoso por sua riqueza e pela invenção do alfabeto e do vidro. Por isso, é que exercem tanto fascínio nas mentes fantasiosas, mesmo tendo vivido tão distantes do nosso continente.

Em torno desse debate,  citarei um fato muito insólito (e até engraçado) relacionado com a Pedra do Retumba que tem a ver com o carnaubense José de Azevedo Dantas, um autodidata que escreveu significados curiosos quanto à nossa famosa inscrição rupestre, e o seu encontro com um austríaco “abilolado” (em 1926) que passou pelo Seridó à procura de provas para as curiosas teses que defendia. Esse austríaco chamava-se Ludwig  Schwennhagen, sendo seu nome, por questões sonoras, transformado para “Chovenágua” pelos sertanejos. Ele era um ferrenho defensor da origem fenícia de todas as inscrições rupestres do Nordeste, considerando as existentes no Ingá e em Pedra Lavrada como provas disso. José de Azevedo e “Chovenágua” se encontraram no Acari e o sábio carnaubense considerou um dos acontecimentos memoráveis de sua vida;  esse encontro ficou registrado para a posterioridade nos cadernos de anotações do austríaco que ainda existem.

E tivemos que esperar muito tempo até que começasse  um estudo sério sobre o significado destas gravuras. Eram tantas as diferenciações existentes entre os desenhos e grafismos entalhados por todo o Brasil, que os estudiosos as dividiram em sub-partes denominadas  “tradições”. As que vemos na Paraíba foram classificadas como pertencentes à “tradição Nordeste” e à  “tradição agreste”. A “tradição nordeste” caracteriza-se  pela presença de figuras humanas e de animais, bem como de objetos e plantas; tais figuras comporiam ações que se referem à técnicas de subsistência, atividades cotidianas e cerimoniais; essa tradição teria surgido no Piauí tendo, depois, espalhado-se para o resto do Nordeste. Já a “tradição agreste”, apesar de apresentar figuras humanas e alguns animais, conta com uma quantidade significativa de “grafismos puros”, aqueles que permitem identificá-los com uma representação do nosso universo sensível (e até sobrenatural). Assim é que a Pedra do Retumba tem marcas destas duas tradições, a Agreste e a Nordeste, com figuras humanas e grafismos puros que resultaram na especulação de que fora desenhada pelos fenícios.

As pesquisas feitas já foram suficientes para se fazer um  levantamento do conteúdo destas gravuras escritas nas pedras, fazendo surgir resultados interessantes sobre o processo de produção dos painéis e sobre o significado da sucessão de figuras que acabaram de decorar os rochedos e até mesmo a composição química das tintas. Nesse cenário, estuda-se o significado das cenas, contextualizando os grafismos através das informações obtidas em escavações.

A despeito da diversidade de opiniões sobre o significado destas inscrições, o fato de as pedras do Ingá e do Retumba estarem localizadas na beira de rios, demonstram que elas tenham a ver com o culto das águas pois os antigos sempre consideraram sagrados os rios que lhes forneciam a irrigação, peixes e água de beber. Assim, é provável que estas pesquisas resultem na conclusão de que a beleza e a complexidade das figuras existentes na nossa Pedra do Retumba derrube a tese de que os caçadores que iniciaram a ocupação de nossa região eram seres primitivos e famintos em busca de grandes animais para comer. Tais gravuras demonstram, isso sim, um domínio do simbólico bastante complexo que, passo a passo, vai sendo desvendado pelos estudiosos de nossa Pré-História.

Na nossa microrregião seridoense abundam inscrições de todos os matizes em milhares de rochas, mas nenhuma atingiu a sofisticação e a beleza de Pedra do Retumba, em Pedra Lavrada. Talvez ela guarde um enigma, talvez não.. Porém, é preciso restaurá-la e preservá-la, por ser um patrimônio inalienável do nosso povo, uma elo entre o presente e o passado de nossa terra amada.

Alisson Pinheiro