PICUÍ NO TEMPO DA ESCRAVIDÃO

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Parece distante o fato de que Picuí e o resto do Brasil tenha convivido com a escravidão durante séculos, e que essa chaga só desapareceu há pouco mais de cem anos. A questão é que quando foi preciso povoar o Brasil, surgiu o problema da mão de obra para cultivar a terra e explorar os recurso naturais. A solução encontrada, após tentarem forçar, em vão,  os indígenas a trabalhar, foi trazer pessoas da África à força.

Quando foi possível transformar a nossa região em área de produção, a terra foi sendo dividida e concedida, mas os escravos chegavam primeiro para viabilizar a posse, fazendo o desmatamento para plantar a lavoura, trazendo o primeiro gado e construindo a primeira habitação.

E o número de escravos trazidos para Picuí  e suas redondezas não parou de crescer, como comprovam os diversos inventários dessa época encontrados pelo caicoense Olavo de Medeiros nos arquivos cartorários de cidades do Seridó da Paraíba e do Rio Grande. Tais inventários (o mais recente data de 1862) mostram pessoas  que possuíam mais de vinte escravos ! Nestes documentos, homens, mulheres e crianças são descritos pela raça, cor e situação de saúde, tudo muito deprimente.

A realidade é que durante todo o tempo em que a escravidão foi aceita em nosso país, ela aviltou o trabalho, corrompeu a relação entre os brasileiros e desorganizou a vida familiar. Sim, pois quem era livre, por mais pobre que fosse, tinha vergonha de trabalhar, e o dono de escravos abusava sexualmente deles, o que impediu a formação de famílias estáveis nas senzalas (e fora dela). A situação chegou ao absurdo de se calcular a riqueza de alguém pelo número de escravos que se possuía !!

Para a sorte da memória regional, vários autores, das duas bandas do Seridó (paraibano e potiguar) conviveram com ex escravos e anotaram suas impressões. Embora tais relatos são de pessoas que viveram na escravidão na sua etapa branda e final, o quadro é uma tristeza só, pois o legado que ficou da escravidão é mais vasto do que pensamos.

O maior de todos estes males foi deixar grande parte dos ex escravos e dos seus descendentes na ignorância e na miséria, como comprova a desproporção de negros e mestiços vivendo em favelas e em situações de risco. As populações escravas recém emancipadas tiveram diante de si o problema de seu ajustamento ao novo estado, processo que continua em curso neste ano de 2016.

O gene desse problema existe na situação de quase todos os escravos descritos nos inventários copilados por Olavo de Medeiros (e eram muitas dezenas), pois somente dois destes cativos, um homem e uma mulher, detinham alguma qualificação que poderia lhes oferecer uma vida digna numa situação de liberdade.

Já os relatos descritivos da vida destes ex escravos, feitos pelo currais novense Othon Filho, mostram um painel completo dessa situação de degradação humana para essa massa que ficou jogada à própria sorte. Estes pobres seres humanos nascidos e criados no Seridó, nem eram merecedores de serem chamados pelos nomes de batismos, pois eram chamados por apelidos, tais quais “Moisés Preto”, “Maria Mouca”, “Inácio Boró”, “Memeu do Urubu”, “Antônio Sereno” e “Urubu”, “Acelera” e “Charuto” (estes dois últimos eram picuienses, num claro sinal de que a escravidão em nossa terra existiu com força!)

O destino de Maria Mouca é exemplar sobre o destino dos ex escravos, residindo a vida inteira em quartinhos, geralmente atrás de casas comerciais, guardando as chaves das casas dos “senhores brancos” (o termo é do autor) que zelava, varria e vigiava, deixando-as em ordem para quando eles viessem para as missas aos domingos ou pra feira. Nos sábados vendia café, para complementar seu orçamento, pois tinha o orgulho de nunca pedir esmolas a ninguém.

Dos vários legados da escravidão, a violência foi um deles. A proporção de escravos em processos criminais era enorme, como vítimas, testemunhas e , sobretudo, réus. Era comum escravos assassinarem seus senhores, como também tornar-se matadores a mando destes. A tradição oral de Cubati conta que o escravo Manoel Maria de Barros, recebeu a alforria e uma propriedade como retribuição por serviços de pistolagem ao seu senhor.

Outra herança triste da escravidão foi a desvalorização e até desaparição do núcleo familiar, pois o casal poderia ser separada e os senhores ou seus filhos, sempre eram os primeiros a dormir com as escravas. Em Picuí temos a história pessoal do herói Silvino de Macedo, filho da escrava Benta com o filho do seu senhor, José Luciano. Ele fez três filhos na escrava, incluindo o Silvino, mas casou mesmo com uma mulher branca com quem constituiu família. Na seca de 1877, quando o fantasma da fome rondava os seus filhos biológicos, ele mando-os trazer para o Recife, mas tão somente por piedade, e nunca para reconhece-los como filhos de verdade. Dois destes filhos retornaram à Picuí quando a situação melhorou, enquanto que Silvino entrou na escola militar da Marinha ainda criança, sendo que tal destino era o reservado para as pessoas humildes e sem família.

Igualmente deprimente foi a permanência de estereótipos associados à cor e às diferenças sociais forjadas no tempo da escravidão, como, por exemplo, em frases do tipo: “Negro quando não suja na entrada, suja na saída”, “isso é papel de negro”, “negro não presta”, “negro é assim mesmo”, “ele tem alma de branco”. Permaneceram palavras comuns com o sentido pejorativo, como “sujeito” (aquele que se submete a alguém, um ser sob o jugo da escravidão), “cabra “(filhos de mulato com negro) e outras do mesmo jaez. Cresci em Picuí, Baraúna e Cubati, escutando com frequência quase todas estas palavras e frases preconceituosas, num claro sinal de que o mundo dos nossos bisavós girava em torno da escravidão.

A explicação para a existência de tão poucos negros em Picuí e na região, reside na miscigenação e na venda em massa de escravos para o Sudeste, após a seca de 1877, que coincidiu com a grande elevação dos preços da escravaria (o valor aumentou 600%!), motivado tanto pela expansão da lavoura do café, quanto pela efetiva proibição do tráfico da África. 

Curioso é fato de que a consciência de que a escravidão era um mal só surgiu poucas décadas antes da Abolição, numa época em que as transformações demográficas e econômicas no Brasil e no mundo fizeram com que o trabalho servil não fosse mais tão necessário; é como se ela só tivesse acabado quando quiseram que acabasse. Entre nós, um conjunto de medidas fez com se evitasse o banho de sangue que ocorreu nos Estados Unidos, mas sem que fosse destruído o conjunto de valores que perdurou durante tantos séculos; muito pelo contrário, eles sobrevivem até os dias de hoje !

As marcas terríveis que ficaram da escravidão, vale repetir,  transcenderam a sua época e, chegando até nós, imprimiram aspectos maléficos na sociedade picuiense e brasileira, que devem ser combatidos. Tais males podem ser nomeados, como certos comportamentos preconceituosos dos que se consideram “brancos”, a marginalidade e o preconceito racial que sofrem muitíssimos negros e mestiços pobres, o baixo nível cultural de grande parte dos afro descendentes, tudo isso deriva do passado distante cujo conhecimento é essencial para a compreensão dos fenômenos atuais.

Um exemplo claro da persistência dessa herança escravagista foi o fato de que a empregada doméstica só veio a se beneficiar de todos os direitos trabalhistas nesta segunda década do século XXI. E o trabalho doméstico, da forma como é encarado por muita gente, não é muito diferente do que existiu no tempo da escravidão.

Daí porque quando pisamos no solo sagrado do Seridó e da Serra de Cuité, onde viveram os nossos ancestrais, não podemos esquecer que milhares de seres humanos foram obrigados a trabalhos inauditos, a derramar seu suor por obrigação, para que estas terras áridas e pedregosas fornecesse a todos o pão essencial de cada dia.

Alisson Pinheiro